terça-feira, 13 de setembro de 2011

 

EVA

EVA

Os olhos de Eva tinham se moldado no exato formato do rosto da mãe. Nos seus oito anos de existência a paisagem mais linda e as imagens multicolores dos desenhos animados não conseguiam desviar sua atenção dos gestos e palavras daquela que era seu porto seguro desde a separação do pai. Proprietária daquela imagem sentia-se suficiente para aceitar a separação dos pais e concentrar-se em crescer e ser feliz.
Herdara da mãe o jeito de dormir com o cobertor por volta da cabeça imitando uma freira. Seu sono findava invariàvelmente as oito em ponto quando a porta do quarto de Érica se abria e podia se levantar para o leite com chocolate, com a certeza de não causar qualquer desconforto a mãe. Cuidava para ser cuidada e sabia com a sabedoria das crianças que tinha se iniciado na difícil profissão de equilibrista. Gritava baixinho, não acionava a descarga do vaso à noite para não incomodar e nunca chorava, pelo menos que se pudesse perceber.
A notícia da viagem de Érica para a Grécia não chegou a lhe afetar. Além das promessas de presentes e do contato telefônico diário, partilhava da excitação da mãe com a fantástica bolsa de estudos que conseguira para aprofundar seus conhecimentos de Arqueologia. Torcia por ela e decorou a data de seu retorno ao Rio de Janeiro.
A ida à escola, às aulas de flauta e de inglês lhe trazia a sensação de rotina e portanto, de que encontraria sua mãe a lhe esperar em casa. Voltando a pé da aula de música notou que a calçada era desenhada por pedrinhas pretas e brancas. Pensava preta, minha mãe me espera, branca não estará lá. Preta sim, branca não... e corria para a porta do quarto confirmando o que já sabia. As brancas ganhavam sempre. Decidiu que quando crescesse tocaria piano. Mudou o jogo e transpôs o número de dias de viagem da mãe em horas e cada hora passada somava um ponto no cálculo final de chegada. Mas se algo fizesse que sua mãe não gostasse retrocedia na contagem. Sujava o vestido com feijão – menos um ponto, esquecera de escovar os dentes – menos dois pontos, esquecera a luz do quarto acessa menos... Percorria os dias distraída com inúmeros cálculos e decidiu anotar tudo com cuidado. Pegou o caderno de música e das cinco linhas percebeu que os espaços eram como pedras brancas, as linhas-pretas. Associou a pontuação calculada a cada dia às anotações sobre as linhas da pauta e concluiu que estava no caminho certo. Algumas dúvidas começaram a surgir em relação aos pontos que caberiam a certos pensamentos que lhe incomodavam a respeito de uma colega da escola a quem nutria uma antipatia visceral. Computava ou não? Sua mãe a entenderia ou era deplorável este tipo de sentimento. Quando a colega passou pelo pátio de mãos dadas com seu maior amigo de turma decidiu consultar a mãe por telepatia. Fazia a pergunta à mãe e imaginava a resposta. Escrevia sobre a pauta musical sem olhar e caso saísse sobre a linha, bingo, era preta. Ponto.
Pouco antes da data prevista pelos cálculos de Eva para a chegada da mãe, a cozinheira lhe entregou um envelope com um lindo selo grego. A luminosidade naquele cartão tão azul lhe cegara por um instante e virando o lado reconheceu a letra caligráfica, com bolinhas em cima dos “is” em vez dos pontinhos.

“Querida Eva,
Tenho recebido notícias suas pela Maria e estou feliz em saber que tudo vai bem na sua vida. Estou gostando muito da viagem e aprendendo coisas novas que vou te contar quando chegar. Terei que ficar aqui por mais tempo do que planejei e sei que você vai se cuidar. Não esqueça de fazer as escalas da flauta e os deveres da escola.
Um beijo grande da mamãe.”
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Como água transparente de um rio de pedras ou a brisa que corre no final da tarde movendo só o topo mais alto das árvores, viveu pela primeira vez a simplicidade. E como é simples a verdade. Não mais importavam os pontos perdidos com esses pensamentos, muito menos os cálculos. Viveu a tristeza como gente grande. Parecia até sentir certa alegria paradoxal das melancolias mais profundas quando nos libertam e nos fazem crescer. Chegou a envergonhar-se pela própria mãe. Érica jamais compartilharia esse milk-shake de emoções da pequena.

Naquela noite agitada sonhou que sua mãe caíra num rio imenso e que desesperada tentava ajudá-la em vão. Já perto da cachoeira, pediu ajuda a um homem que se lançando corajosamente nas águas trouxe sua mãe para a beira. Aterrorizada percebeu que esse homem tinha seus próprios olhos. Ao despertar viu que molhara a cama como não fazia desde os dois anos de idade.
Bem cedo pediu o telefone do pai à Maria e chorando finalmente pediu que viesse pegá-la, queria um sorvete coberto de calda quente de chocolate e bastante castanha.

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Comentários:
Tio, gostei muito. Lindo conto.
bjs,
Nira
 

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