segunda-feira, 14 de setembro de 2009

 

Magnólia

Magnólia é dessas pessoas que não existem mais. O nome da flor foi incorporado a sua vida. Solteira convicta, devota de Nossa Senhora e cheia de saúde aos 87 anos é amante da rotina de obrigações que sua formação moral sempre exigiu: Igreja aos Domingos, passeios à beira mar para limpar os pulmões, pagamento das contas sempre adiantado.
Surpresa e fragilizada com a morte da irmã com quem esperava dividir o final de sua vida, tomou como sua as obrigações de Cecília, dedicando-se ao agora viúvo Afonso, excetuando-se, é claro, as do leito.
Visitava diàriamente o cunhado cuidando de ouvir com compaixão as repetidas lamúrias de seu infortúnio, da sua frágil saúde e suas preocupações com o filho Dagoberto.
Na flor de seus 77 anos, Afonso não hesitava em sobrecarregá-la com pedidos: da compra de remédios, contratação de empregados, supervisão da limpeza e até de uma demanda infinita por visitas mais assíduas e longas que apesar do sacrifício ela se empenhava em atender.
Sentindo-se inútil, quase aleijado, nas suas próprias palavras, transferiu todas as tarefas possíveis para sua confortável sobrevivência, incluindo a administração financeira de sua polpuda aposentadoria, receber, pagar contas, relatório contábil detalhado - Magnólia sentia como sua obrigação.
O filho Dagoberto aparecia mensalmente, sempre após o recebimento dos seus proventos e calçado nos próprios infortúnios levava a maior parte da sua aposentadoria, como empréstimo a ser devolvido assim que melhorasse de vida. Sofria o sofrimento do filho. Piorava ao saber que não conseguia emprego, a asma se agravara e sem vestir-se bem e locomover-se de táxi ficava impossível estabelecer os importantes contatos que certamente se transformariam na fonte para a solução de todos esses problemas.
Cada vez era mais difícil administrar as despesas e Afonso estava ansioso pelo salário extra que viria no abono do Natal.
Magnólia com sua competência e solidariedade fazia malabarismos e por vezes completava pequenas quantias necessárias aos remédios essenciais à sobrevivência do último parente vivo que ainda se relacionava, mesmo recebendo apenas uma pensão do INSS.
No final de novembro falando com a voz grave e quase inaudível explicou que seu filho Dagoberto estava prestes a entrar como sócio minoritário de um grupo muito forte em Búzios e necessitava de um adiantamento para agilizar todo esse processo. Portanto pedia que Magnólia fosse o mais cedo possível ao banco e que retirasse o valor completo de sua aposentadoria e abono Natalino e o trouxesse imediatamente para poder atender as despesas corriqueiras e ajudar seu filho a ser o Homem que o destino lhe reservara. Magnólia argumentou que correspondiam ao dobro do recebimento mensal e que seu soldo de General não era uma soma desprezível. Sentiu-se culpada com o pensamento que lhe acometeu de negar tal pedido.
Depois de muita insistência, “é um pulo, uma esquina apenas, afinal todos se conhecem nesta área” resolveu aceitar e pediu perdão a Santa com o rosário na mão ajoelhada na beira da cama antes de recolher-se.
Por zelo pediu a Severino, seu porteiro, que lhe acompanhasse e que fazia questão de pagá-lo pelo serviço assim que recebesse os seus próprios proventos.
Com o dinheiro na bolsa e Severino do lado saiu tão rápido do Banco quanto rápido foi o pivete que em um tranco lhe jogou no chão, arrancou-lhe a bolsa com o dinheiro, com a solução de Dagoberto e com parte da sua infinita piedade.
Não foi neste dia nem no seguinte a casa de Afonso e não iria mesmo sem encontrar uma solução. Duas noites insones foram pouco para suas reflexões. O telefone tocava e Magnólia catatônica não conseguia erguer o braço.
Após seu passeio pelo calçadão, ao passar por Severino, disparou: - “Amanhã pela manhã precisarei dos seus serviços, às 10h em ponto, por favor,”.
Sem hesitar retirou praticamente todo o valor de sua poupança e dirigiu-se com Severino para a casa de Afonso.
Cheio de ansiedade e com ar de contrariedade Afonso antes de cumprimentá-la esticou os dois braços para pegar o pacote.
-“Alto lá, Afonso, tenho um dedo de prosa para trocar com você”. Sentou-se, colocou o pacote no colo, passando a detalhar o ocorrido. Afonso mal conseguia ouvi-la com os olhos esbugalhados dirigidos ao pacote. No intervalo de uma tomada de fôlego de Magnólia, lançou-se sobre o pacote dizendo: - “Sabia que poderia confiar em você, minha cunhada. Não me faltaria com esta solidariedade nesse momento tão difícil da minha vida”.
Magnólia sentiu como uma punhalada nas costas e suando muito já se levantava quando Afonso completou: - “Não é mesmo Severino, nesta situação você faria igual à Magnólia”.
Severino sem fitá-lo diretamente respondeu: - “Ah seu Afonso não faria não, até porque eu não teria como”, tentando abrandar suas ousadas palavras.
Magnólia já estava na porta e despediu-se formalmente de Afonso.O telefone de sua casa tornára-se objeto de decoração e ficava na dúbia sensação de querer ouvir Afonso e temer pela sua chamada.
A rotina voltou e os telefonemas de Afonso também. Futilidades, lamúrias, doença e falta de dinheiro eram os temas preferidos de Afonso. Magnólia tornou-se ouvinte, e nada mais. Cada vez mais freqüentes e longas eram as chamadas de Afonso que não se contentava mais com um telefonema diário. Dagoberto desaparecera, Afonso estava só, e pior, sem dinheiro. Era vítima e gostava de sublinhar este estado. Magnólia fechou-se como uma flor que murcha diante de um sol sem trégua em um dia de verão carioca. Emagrecia e rezava o terço mecànicamente, com o pensamento longe concentrado em não sabia bem o quê e com um gosto amargo que não lhe largava. Muito tempo se passou para que o desconforto de Afonso tomasse forma. Como quem não quer nada, lançou: - “Posso assumir uma parte do prejuízo, talvez a metade, dividida em dez vezes...”
Quase aos prantos e com tremendo esforço para não demonstrá-lo Magnólia respondeu rápido: - “Eu aceito”.

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