domingo, 15 de novembro de 2009

 

ABIGAIL

Abigail

Ecoou como um estrondo a ausência do latido de Herculano naquela manhã. Com as mãos Abigail apalpou os lençóis e sentiu o pelo macio a seu alcance, mas ainda assim seu coração disparou pressentindo o pior. Sentou-se abruptamente na cama e alguns segundos se passaram, fitando o corpo inerte daquele que tinha sido o único ser vivo a deitar no seu leito nos últimos doze anos, até cair num pranto convulsivo que se estendeu por toda manhã de Domingo.
Sentia-se culpada por ter atrasado a visita ao veterinário, perguntava-se se a aragem da Lagoa na noite de Sábado ou as vitaminas importadas pudessem ter colaborado para o destino fatal. Andava de um lado para outro no pequeno apartamento de Copacabana, pensando que já velha e doente poderia ter partido antes de Herculano.
Com o telefone na mão e fortalecida pela decisão tomada, Abigail entendeu que restava proporcionar um funeral digno a seu fiel cão. Discou para Jandira que morava na Barra da Tijuca e foi acolhida. Recebeu não só a garantia de espaço no seu amplo jardim como os serviços de José capaz de arrumar tijolos de forma quase artística. Antevia a cerimônia tão adequada e não conseguia deixar de pensar na reaproximação com Jandira, amiga desde os tempos escolares, que tendo se mudado para tão longe levara a vida de Herculano o tempo que não se falavam pessoalmente.
Excitada com tudo que tinha pela frente vestiu-se com um tailler elegante usado uma única vez no enterro do marido e pegou a caixa da TV nova que comprara recentemente, acomodando Herculano com cuidado. Viveu como o início do derradeiro adeus o fechamento da caixa transformada em urna funerária.
O táxi pego foi o primeiro a parar ao levantar o braço. Parecia-lhe perfeito pelo espaço para a caixa bem do seu lado. O vento da janela da frente entreaberta, fazia com que seus pensamentos voassem e lhe transportava para o enterro do marido que havia transcorrido com tal emoção que só agora inexplicavelmente retornava com uma riqueza de detalhes tal que parecia estar revivendo os mesmos sentimentos. Uma lágrima derramou-se pela face distorcendo levemente sua pintura.
A freada lhe assustou e mais ainda ao varrer o olhar em volta e nada reconhecer. Ouviu as palavras do motorista como uma ordem de execução.
-“ Fim de linha madame, pode descer”.
- “Mas aqui não é meu destino senhor, eu vou para a Barra, não lhe disse?” Respondeu assustada.
-“Chispe madame, sem escândalo”.
Abigail abraçou a caixa de TV como um tesouro e resignada virou-se para abrir a porta quando ouviu o grito:
-“A caixa fica madame”
Aos prantos desceu desesperada e o motorista seguiu feliz da vida antevendo o prazer de assistir a copa do mundo naquela televisão tão grande...

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O Lugar das Evidências

Sou um aficionado das novas tecnologias na área médica e não canso de dizer com orgulho aos meus pacientes que a medicina que exerço hoje é infinitamente melhor do que há 31 anos quando me formei. Chegamos ao ponto de conseguirmos visualizar uma artéria coronária sem cateterismo através de tomografia e reconstrução tridimensional da imagem do coração em computador, para citar apenas um pequeno exemplo. Nossa prática médica melhorou por que, associado aos avanços tecnológicos, nunca abri mão do relacionamento pessoal com cada cliente, do exame clínico rigoroso e, principalmente, do entendimento de que as evidências de trabalhos científicos devem ser utilizadasno interesse dauele paciente específico com a intuição necessária e decorrente de todos os elementos objetivos e subjetivos daquele relacionamento.
Mas há algo de supostamente "novo" na prática médica que, apesar de aparentemente concordar com aqueles postulados, não se dá conta de que iguala por baixo o ato médico e o afasta do seu objetivo principal que é o de cuidar dos nossos semelhantes! É compreensível a influência da produção industrial na organização do trabalho médico, com suas linhas de produção e estabelecimento de metas. Refiro-me principalmente à Medicina Baseada em Evidências, cujos defensores vêm se propondo a reformular toda a prática médica, mas parecem agir à maneira da ama desastrada que, depois de banhar cuidadosamente o bebê na bacia, atira-o fora junto com a água suja.
Ao se contrapor a "todo poder ao médico" dos séculos passados, passou-se a exigir uma conduta baseada em "evidências". Concordo que o tempo dos grandes medalhões que "sabiam tudo e não explicavam nada", e ainda culpavam os pacientes por seus próprios fracassos, está definitivamente enterrado. Porém é inaceitável que com objetivos de agilizar o atendimento para grande número de pacientes, feir-se o princípio do indivíduo como indivisível e único. Os protocolos não podem ser tomados como se fossem uma espécie de "Dez Mandamentos": decorados e seguidos cegamente. Temos de lembrar que o que se chama de evidências são pesquisas feitas com grande número de pessoas e em vários países em que se avalia um determinado medicamento ou uma ação médica. Porém, certos atos médicos e certos medicamentos, consagrados há longos anos, não apresentam rentabilidade para que justifiquem um investimento numa pesquisa deste porte.Sabemos também que os consensos internacionais são momentâneos e modificáveis, quando novas pesquisas nos provam o contrário do que concluímos anteriormente. Vejam o caso da reposição hormonal nas mulheres!Os "guide lines" (linhas guias de prática e investigação) são seguidas como se a investigação diagnóstica fosse uma espécie de escada linear e nenhum espaço houvesse para a intuição. A superespecialização é filha deste olhar "prático"cada mais fragmentado, mas deixemos este vasto assunto para outra ocasião.
O limite das ações médicas deve ser dado pelo conselho ético de nosso órgão corporativo, e não por alguém que não existe a não ser nas nossas mentes e corações - A CIÊNCIA - , como algo abstrato e afastado de nós. Os charlatães sempre existiram e continuam a vender ilusões. São casos de polícia. Aos colegas pedimos um momento de reflexão, e aos pacientes, que continuem a partilhar suas angustías mais profundas conosco na busca de uma vida melhor e mais longa, sempre.

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